Consenso e disceptação
Dinâmicas que envolvem a disceptação e o consenso marcam o caminho da humanidade – são indissociáveis nas relações institucionais e interpessoais. É preciso, pois, ter a sabedoria para arquitetar o consenso administrando as divergências. A disceptação sinaliza a arte da convivência com diferenças e diversidades, uma característica das sociedades complexas neste mundo contemporâneo. A divergência, enquanto fenômeno social, é indispensável, inclusive para superar as dissensões. Por isso, ao arquitetar consensos é fundamental suportar o confronto de posicionamentos que podem ser até opostos. Importante lembrar: para se chegar ao entendimento, deve haver fidelidade a valores intocáveis, a exemplo do necessário respeito a quem tem perspectiva divergente.
Renunciar à disceptação, em qualquer processo de escolha, decisão ou definição é um equívoco. O consenso não é sinônimo de unanimidade e menos ainda de uniformização. Ao invés disso, trata-se da articulação das diferenças, gerando uma riqueza a partir da administração inteligente e respeitosa de confrontos. Assim deve ocorrer no ambiente acadêmico, nas articulações políticas, na configuração hermenêutica da prática judiciária, nos contextos religiosos e até mesmo no ambiente doméstico. A disceptação, é oportuno lembrar, se fez presente no início do cristianismo e gerou a primeira assembleia da Igreja, narrada pelo evangelista Lucas nos Atos dos Apóstolos. Nessa assembleia, se construiu um consenso que determinou rumos novos na expansão do cristianismo nascente. Também é importante se recordar do apóstolo Paulo que, no areópago de Atenas, estabeleceu um confronto com seus interlocutores para levá-los a novos entendimentos. A meta era conduzi-los rumo à compreensão mais enriquecida a respeito da religiosidade.
Consensos nascem de articulada administração dos confrontos de opiniões, ideias e compreensões. Assim são estabelecidos os tratados de paz, elaboradas as cartas magnas constitucionais, definidas legislações e prioridades, reconfigurados costumes e hábitos. Não menos complexos são os embates inerentes ao exercício da cidadania e da vivência da fé. Uma sociedade participativa e democrática só se sustenta pela prática dos confrontos de opiniões com o objetivo de buscar convergência para formar o consenso. O respeito a princípios intocáveis e a reverência a valores inegociáveis constituem regra de ouro nesse processo. Esses princípios e valores têm força para não deixar ruir a arquitetura dos entendimentos.
Sabe-se do grande risco que se corre, na administração de confrontos, quando prevalece a rigidez. A rigidez revela falta de equilíbrio emocional para lidar com embates e discordâncias. A contemporaneidade, em contraposição aos avanços tecnológicos e científicos, tem sido palco de intolerâncias e de polarizações até patológicas em razão da rigidez. Isso se revela na incapacidade para o diálogo, que exige o respeito às diferenças e a busca pela harmonia, condições necessárias à construção de entendimentos. Não se estabelece consensos sem discordâncias – e não se administra a disceptação sem reconhecer e respeitar as divergências.
Pode até ser mais cômodo partidarizar-se, se fixar em determinado extremo, do que criticamente posicionar-se diante de tema importante. Mas os resultados serão sempre comprometidos, pois é atitude que estimula a intolerância e revela pouca competência para discernimentos. Sociedades, instituições ou grupos que não investirem na competência humana e espiritual para suportar confrontos e se enriquecer a partir das divergências perderão força. Pela fraqueza de seus integrantes, permanecerão incapazes de curar suas feridas, livrar-se de suas evidentes fragilidades e encontrar respostas adequadas para seus desafios. O consenso nunca será fruto do pensamento uniformizador, mas do diálogo em busca da verdade. É hora de superar a incompetência para lidar com confrontos, caminho para se alcançar consensos.